Texto publicado na “Revista Super Interessante” em
maio/2003, mas tem algo de tão familiar nos dias atuais.
Autor: Sergio Xavier Filho
Corintiano odeia palmeirense, flamenguista quer matar vascaínos,
cruzeirenses não suportam atleticanos. Inverta as sentenças, troque os clubes e
chegaremos ao mesmo lugar: todos se odeiam e o futebol é um caldeirão sem fundo
de violência e ressentimentos. Vira e mexe, lemos que mais um torcedor atirou
no rival, que a gangue de determinado time encarou a adversária em batalha
campal. Passado o horror, a vida segue. E o diagnóstico para o problema se
mantém: a solução para a violência no futebol passa sempre por reforço no
policiamento e pelo fim das torcidas organizadas. Mas será que a raiz do
problema está realmente aí?
Minha impressão é que estamos muito longe da verdadeira questão. É
evidente que polícia eficiente e fim da sensação de impunidade são armas poderosíssimas
quando o assunto é uma contravenção qualquer. Mas a verdade é que, no futebol,
o remédio para a violência só faz alimentar o ódio entre torcedores. Basta
lembrar como o problema vem se avolumando nos últimos anos. No passado, a
pancadaria ocorria dentro dos estádios, nas arquibancadas ou nas bilheterias.
Em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e em toda a parte, era comum
vermos torcedores usando os mastros de suas bandeiras como armas. O que foi
feito? Como na piada do marido traído que queima o sofá que acolheu a mulher e
o amante, baniram-se os mastros das bandeiras e montaram-se operações militares
de isolamento das torcidas.
De fato, os estádios ficaram menos violentos. Mas isso nem de
longe traduziu-se em paz e tranquilidade para quem quer só ver o jogo. Apenas
transferimos a arena. Onde acontecem brigas e mortes, hoje? Nos acessos de
estádio, em algum ponto de ônibus da periferia, nas imediações do metrô. O
torcedor é um cão raivoso preparado para atacar. Quando está no estádio, é acuado
pelas grades e cassetetes dos policiais. Mas longe dele e sem coleira ataca sem
piedade.
É a intolerância o combustível da violência no futebol. Não
admitimos a diferença, não respeitamos a opinião contrária. E o que temos feito
para acabar ou pelo menos reduzir essa intolerância? Nada. Pelo contrário. Ao
estimular o confinamento de torcidas, estamos treinando as bestas. Estamos
criando pitbulls e dobermans do futebol, com dentes cada vez mais pontiagudos e
com mais ferocidade. Só se aprende a respeitar o diferente quando se convive
com ele, quando vemos que há algo de humano no sujeito que veste a cor
adversária.
Utopia? Talvez, mas confesso que já vi a utopia de perto na minha
frente. Quando criança, em Porto Alegre, fui a incontáveis partidas entre Grêmio
e Inter. E lembro-me de caminhar lado a lado com torcedores rivais. É claro que
havia deboche dos vencedores sobre os vencidos. Era chato perder o jogo, mas as
provocações eram muito criativas. Nem todos encaravam a situação com o mesmo
bom humor, mas ninguém batia em ninguém. Todos sabiam que era proibido agredir,
não porque essa regra estivesse prevista no Código Penal, mas porque ela estava
inscrita na mente das pessoas. Era uma regra social, e isso vale mais que a
lei. Por que o mesmo sujeito que não joga papel no chão do metrô emporcalha as
ruas do centro? Ora, porque o ambiente pode determinar comportamentos.
Na Copa da França, em 1998, presenciei ingleses e argentinos lado
a lado. E esses, sim, têm bons motivos para se odiarem. Já se pegaram até em
uma guerra de verdade, a das Malvinas. Pois na Copa as duas seleções se
enfrentaram nas oitavas-de-final e as confusões foram mínimas. Detalhe: em
mundiais, os ingressos são vendidos sem grandes divisões de torcidas e no
estádio inteiro havia inglês sentado ao lado de argentino. Por que eles não se
matavam? Na minha opinião, porque ao ver o “inimigo” ao lado comendo pipoca com
o filho pequeno fica difícil odiar. Não faz sentido cantar um grito de guerra
quando a vítima está tão próxima. Poderia ser diferente se ingleses ficassem de
um lado e argentinos no outro. Quem sabe, depois de 90 minutos de incitações
coletivas e mútuas, as duas torcidas não se encontrassem na saída e se
pegassem?
Pego o exemplo da Copa e trago para o Brasil. Uma arquibancada que
alternasse palmeirenses e corintianos ensinaria algo. Se aceitamos o rival lado
a lado no estádio, por que bater nele na estação de metrô? Haveria discussão?
Claro, é da alma do futebol provocar, tripudiar e debochar. Mas, com treino
(até humanidade precisa ser praticada), quem sabe não aprenderíamos a conviver
com a diferença e até rir? E talvez, em lugar de uma bordoada, daríamos uma
sonora gargalhada.
“Ao confinar as torcidas, estamos treinando as feras”