Para
especialistas, quebra de valores é um dos motivos do repúdio da sociedade
RIO- Em menos de uma
semana, duas notícias provocaram polêmica entre os brasileiros. No dia 10 de
março, o time de futebol Boa Esporte, de Varginha (MG), anunciou a contratação
do goleiro Bruno, que deixou a prisão após cumprir seis anos da pena de 22 anos
e três meses estabelecida pela Justiça por sua suposta ligação com a morte de
sua ex-namorada, Eliza Samúdio. A imagem do jogador posando para fotos e dando
autógrafos a crianças causou ainda mais discussão. Quatro dias depois, o
ex-detento Guilherme de Pádua, condenado pelo assassinato da atriz Daniella
Perez, trocou alianças com Juliana Lacerda em um cartório de Belo Horizonte. A
volta de ambos à vida social, ao menos em parte — Bruno ainda recorre da
sentença —, promoveu longos debates a respeito da ressocialização de egressos
do sistema penitenciário.
Especialistas no tema apontam que grande parte
da população brasileira não está pronta para a reinserção dessas pessoas e
espera que os criminosos “desapareçam”. A quebra de valores morais e a
solidariedade com os familiares da vítima estão entre os fatores que causam o
sentimento de repulsa.— As
pessoas normalmente reagem muito mal a qualquer agressão aos valores da
sociedade, seja do ponto de vista religioso ou penal. Há um preconceito social.
A pessoa cometeu crime, foi punida e depois de algum tempo ela vai ter que
sair, mas em geral a população reage mal e fica sempre lembrando que aquele
cara cometeu um homicídio — afirma o psiquiatra forense Talvane de Moraes. —
Quando a população fica sabendo do crime, sofre com a notícia, se condói da
vítima, se solidariza com a família. É natural, mas precisamos trabalhar para
que a sociedade aceite pessoas que pagaram pelo erro.
O goleiro Bruno foi condenado em primeira
instância pelo envolvimento na morte de Eliza Samúdio, mas a defesa do acusado
recorreu à segunda instância e, até o momento, a Justiça não proferiu nova
decisão sobre o caso. Por isso, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo
Tribunal Federal (STF), decidiu conceder habeas corpus para que Bruno recorra da sentença em liberdade.
O ex-ator Guilherme de Pádua que, em 1992 — junto com sua ex-mulher Paula
Thomaz —, assassinou a facadas a atriz Daniella Perez, foi condenado na época a
19 anos de prisão e ficou preso por seis anos.
Nesses casos específicos, a barbaridade dos
crimes pode compor a lista de fatores que impulsionaram a aversão da sociedade
a seus autores. A socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos
de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes, sublinha que a
morosidade da Justiça, que faz com que um detento fique anos sem uma sentença
definitiva, gera na população a sensação de impunidade.
— O estigma de ex-criminoso persegue
essas pessoas. No caso do Bruno, ele é acusado de participar de uma morte em
que houve esquartejamento. É muito emblemático. As pessoas ficam chocadas
pensando que ele ficou meia dúzia de anos e já saiu, mas ele não pode ficar
preso indefinidamente aguardando julgamento. Os advogados se valeram de um
recurso legítimo — analisa. — Se ele tivesse cumprido sua pena, acho que talvez
a reação não fosse essa. Acredito que parte da reação tem a ver com a sensação
que foi provocada de que o crime ficou impune.
Outra
questão que, segundo Julita, intensifica a discussão em torno do caso do
goleiro Bruno, é o receio de que ele volte a ser um ídolo.
— A
repercussão também está relacionada à preocupação com a idolatria. Há
determinadas profissões que estimulam uma admiração cega. O jogador atrai uma
admiração que tem a ver com o imaginário do brasileiro, então é como se esse
sentimento apagasse da memória o crime pelo qual a pessoa foi acusada.
NOVA CHANCE
É EXCEÇÃO
Assim como
Bruno e Guilherme de Pádua, Samuel Lourenço, 30 anos, respondeu na Justiça por
um homicídio: aos 20 anos ele assassinou a amante do amigo a facadas. Após
cumprir seis anos de pena em regime fechado, três no semiaberto e um no aberto,
Lourenço vive agora em liberdade condicional. Aluno do sexto período de Gestão
Pública na UFRJ, ele também trabalha em um escritório de advocacia, mas afirma
que a ressocialização é uma realidade distante.
— Não é tão
fácil assim. O goleiro Bruno recebeu (proposta de emprego). Você encontra uns e
outros que recebem, mas em geral os presos ficam sem trabalho. Eu posso apontar
pelo menos 15 amigos que têm dificuldade com questão de trabalho. (Receber
propostas) não é regra, é exceção. Seria maravilhoso para a gente que todos os
egressos saíssem e tivessem oportunidades — opina Lourenço. — Por eu ter sido
preso, fiquei super feliz quando vi que Bruno arrumou um trabalho de imediato.
É hora da retomada da vida. Assim como fico feliz quando vejo que Suzane (von
Richthofen) quer estudar. Depois do crime, teve condenação, teve recurso. Mas
as pessoas ficam ligadas diretamente com o crime.
Coordenador
de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio, Emanuel Queiroz afirma que
além do preconceito, os egressos esbarram em questões burocráticas.
—
A sociedade prefere que os criminosos desapareçam na cadeia e nunca mais
retornem. Estima-se que 5% do efetivo carcerário do estado não têm registro de
nascimento. Quando são presas e condenadas, essas pessoas têm o direito
político suspenso, então não podem se inscrever para ter o título de eleitor.
Mas precisam dele para ter CPF e de CPF para ter carteira de trabalho.
Embora
tenha cumprido grande parte de sua pena e esteja estudando e trabalhando,
Samuel Lourenço afirma que a receptividade encontrada por ex-detentos famosos
em algumas pessoas, muitas vezes, não acontece com quem é anônimo. Revelar seu
passado mesmo entre os colegas universitários não foi confortável.
—
Ser famoso está relacionado às pessoas conhecerem um pouco da sua história.
Essa é uma dificuldade da prisão para quem não tem uma exposição midiática: as
pessoas só te conhecem a partir de um crime. O fato de algumas pessoas muitas
vezes apoiarem o Bruno e não apoiarem outros presos está relacionado a não
conhecerem a história (dos outros) — argumenta Lourenço. — A gente prefere
reconhecer o cara pós-cárcere como um criminoso. Eu sou um cara que as pessoas
querem que amarre num poste. Então, chegar na universidade é um grande desafio.
Fonte e créditos: http://oglobo.globo.com
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