A história brasileira tem uma curiosa elasticidade moral.
Ela se estica conforme o personagem, o contexto político e — sobretudo — o interesse do momento. O nome disso não é justiça. É conveniência.
O país que concedeu anistia a assaltantes de bancos, sequestradores de embaixadores e militantes armados, em nome da “pacificação nacional”, agora se apresenta como guardião inflexível da lei diante de um episódio de vandalismo político ocorrido em 08 de janeiro de 2023.
A pergunta é inevitável — e incômoda:
desde quando a régua moral do Estado passou a funcionar com pesos tão diferentes?
A anistia seletiva
A anistia no Brasil nunca foi um gesto puramente jurídico. Sempre foi política.
Foi concedida não porque crimes deixaram de ser crimes, mas porque o poder entendeu que olhar para frente era mais útil do que insistir no passado.
Assaltos a bancos foram relativizados.
Sequestros internacionais, enquadrados como “atos de resistência”.
Mortes e explosões, diluídas no discurso da luta por um ideal maior.
A lógica era clara: o contexto justificava os meios.
Hoje, curiosamente, essa mesma lógica foi enterrada — mas só para alguns.
08 de janeiro: crime, sim. Heresia, não.
Não há aqui defesa de vandalismo. Depredar patrimônio público é crime, ontem, hoje e amanhã.
Mas transformar baderneiros em inimigos ontológicos da democracia, enquanto o passado violento de outros grupos é tratado como capítulo romantizado da história, revela mais sobre o presente do que sobre o ato em si.
Não houve sequestro de autoridade estrangeira.
Não houve tomada armada do poder.
Não houve guerra civil.
Houve caos, vandalismo, irresponsabilidade e manipulação política de massa.
Ainda assim, o discurso oficial escolheu a via da excepcionalidade absoluta: penas máximas, narrativa épica do mal, demonização total — como se o país estivesse diante de um novo 1964 ao contrário.
O problema não é a punição. É a incoerência.
O Estado tem todo o direito de punir.
O que ele não tem é o direito de fingir neutralidade histórica.
Quando a anistia foi concedida a crimes graves do passado, o argumento era a reconstrução institucional.
Hoje, quando se discute anistia para os eventos de 2023, o discurso muda: fala-se em ameaça irreparável, em exemplo, em rigor pedagógico.
Ou a democracia é forte o suficiente para sobreviver a vândalos,
ou nunca foi tão sólida quanto se proclamou.
As duas coisas ao mesmo tempo não cabem no mesmo discurso.
Justiça ou narrativa?
O que está em jogo não é apenas punição. É narrativa.
É decidir quem será lembrado como criminoso comum e quem será elevado a personagem histórico “complexo”.
A anistia no Brasil sempre foi menos sobre justiça e mais sobre quem venceu a disputa simbólica do seu tempo.
E hoje, quem controla a narrativa controla também o perdão — ou a ausência dele.
O risco do precedente
Quando o Estado escolhe tratar eventos políticos com critérios morais móveis, ele abre um precedente perigoso:
o de que a lei não é igual para todos, mas ajustável conforme o alinhamento ideológico.
Isso não fortalece a democracia.
Isso a fragiliza.
Porque amanhã, com outro vento político, a régua muda de novo — e quem hoje aplaude o rigor pode ser o próximo a descobri-lo na própria pele.
Conclusão desconfortável
O Brasil já perdoou crimes muito mais graves em nome da estabilidade.
Recusar até o debate sobre anistia agora não é sinal de maturidade democrática — é sinal de medo.
Medo não do passado,
mas do que a comparação histórica revela.
E a história, quando mal resolvida, sempre cobra juros.